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A tarde, o sol, o barco e o touro


Em a “Morte ao Entardecer”, duas mortes, do sol e dos touros, Hemingway ensina como aceitar as touradas...

Fernando Pessoa não achava graça em touradas, embora tenha dito em uma mini crônica: “Há poesia em tudo — na terra e no mar, nos lagos e nas margens dos rios. Há-a também na cidade — não o neguemos — facto evidente para mim enquanto aqui estou sentado: há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia na trepidação dos carros nas ruas em cada movimento ínfimo, vulgar, ridículo, de um operário que, do outro lado da rua, pinta a tabuleta de um talho.”

Não listou os bois, mas, por um silogismo frugal, haveremos de pensar que há poesia nas touradas, em corridas de touros, nos toureiros, em cada touro, e naqueles que morrem diante de nossos olhos? Talvez por isso mesmo, ele também dissera que “a literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida”.

Em a “Morte ao Entardecer”, duas mortes, do sol e dos touros, Hemingway ensina como aceitar as touradas, como ver beleza na morte de um touro diante de uma audiência animada pelo ritual antecedente ao golpe fatal do toureiro, a agonia do animal ajoelhando-se lentamente, uma cena embrulhada na trama entre o matador e a vida, do animal e dele mesmo, um morto potencial ali na arena. Neste seu livro reportagem, misto de crônica caudalosa (447 páginas), Hemingway inicia afirmando que, para descrever a vida, ou a própria morte, é preciso senti-las, vivenciá-las, testemunhar as duas, o exato momento de uma e de outra.

A vida, assim se espera, é muito mais demorada do que a morte, que pode existir no breve espaço de um sopro, de um tiro, ou na ponta da espada numa tarde de verão.

A primeira vez que Hemingway assistiu uma tourada, estava aprendendo a escrever, confessa mais tarde naquele manual literário das touradas. Vivia em Paris e publicaria seu primeiro romance, “The Sun Also Rises” (O Sol também se Levanta – Brasil – O Sol Nasce Sempre, Fiesta – Portugal), tido como a sua terceira principal obra prima, depois de “O Velho e o Mar” (segunda) e a primeira, “Por Quem os Sinos Dobram”. Recentemente casado, pela primeira vez (casaria mais quatro vezes até se matar, após tourear a própria vida contra o alcoolismo, depressão e perda de memória), foi com a mulher grávida de seu primeiro filho à Pamplona e apaixonou-se por tudo o que vestia as touradas de alegórico e folclórico, descrevendo com requintes matemáticos as variações entre o México, América Central e do Sul, e em Espanha. Encantou-se com a morte, com o suicídio, com a vida na forma de um texto abreviado. Intriga, Hemingway ignorar as touradas em Portugal.

Entretanto, em a “Morte ao Entardecer”, ele inclui um glossário provavelmente completo para quem queira aprender a morfologia das expressões tauromaquianas, e o verbete “jaca” refere-se ao estilo gracioso com que o português toureiro Simão Da Veiga monta a sua égua, e é capaz de liberar as duas mãos para espetar o touro, gineteando apenas com a força dos estribos. Em outro momento, “Sobre Escrever”, um conto inacabado, pelo alter-ego Nick Adams, Hemingway revela a sua admiração novamente por Simão Da Veiga. Naquele princípio de aprendizagem sobre as touradas, paixão à primeira vista apesar de tudo o que lhe advertiram de horrendo e desumano, nasceu seu primeiro filho, enquanto não por acaso ironicamente ele formara um grupo de escritores expatriados (migrantes da época) em Paris (Ezra Pound, Gertrude Stein, Fitzgerald, Picasso, entre outros) quando inventaram quase juntos, da boca de Gertrude, a expressão título deles mesmos, Geração Perdida.

Nas últimas décadas de sua vida, enquanto ainda vivia em Cuba, ignorando estar ligado à península Ibérica além da cultura Espanhola, era o seu primeiro imediato no famoso barco Pilar (nome da principal guerrilheira em “Por Quem os Sinos Dobram”) Gregório Fuentes, que lhe inspirou em grande parte a criar o personagem de O Velho e o Mar. Fuentes, radicado em Cuba, era pescador marinheiro originário das Canárias. Pois, as embarcações de pesca e transporte, em Havana, assim como as de Cabo Verde, Canárias, Madeira obviamente e Açores, herdaram suas graciosas linhas da arte de carpintaria naval tradicional portuguesa, dado o domínio de Portugal na região nos tempos dos descobrimentos, de Bartolomeu Dias à Magalhães, de Vasco da Gama à Pedro Álvares Cabral; de Camões à Pessoa.

Pude reunir estes intrincados dados históricos ao colaborar com Andy Garcia para o filme Hemingway & Fuentes, quanto ao barco de pesca sonhado pelo autor de “O Velho e o Mar”, uma sequência do filme ora em produção...

Um corte seco na montagem de um filme hipotético, seguido da transposição temporal até os nossos dias, numa viagem acima do lendário Rio Tejo a partir de Lisboa, antevejo os gritos de Olé, Olé, nas ruas de Vila Franca de Xira, meu primeiro contato íntimo com os touros... Lugar mágico, esquecido dos roteiros oficiais turístricos, abrigo de fortes resíduos do Império Romando, da queda de Napoleão, trincheira de D. João na episódica revolução absolutista, sem falar que o homem montava bem, e toureava. Em VFX, num raio possível de alcance em uma caminhada de meia hora, é possível visitar uma Fábrica das Palavras, vários museus, inclusive que tenham no acervo peças arqueológicas locais datadas antes de Cristo, parques arborizados, antigos e novos, praças de esporte, marina, comunidades pesqueiras, varinos, sim, e touros...

Enquanto aprecio um cartaz, figuras pinceladas em guache dos campinos em coletes encarnados, lembrando de meu avô gaúcho Maragato, de Toronto o amigo John Hemingway (neto de Ernest Hemingway, autor de "Strange Tribe") me avisa que terminara seu romance inédito, Pamplona, pronto para entregá-lo à editora em New York, e me convida para a San Fermin, em Espanha. Tal o avô famoso, John assiduamente participa in loco, todos os anos.

De East Havens, Connecticut, outro membro da família, Christopher Hemingway, me envia “The Day the Bull Live” (publicado apenas em inglês), seu livro de poesia recém-lançado, e em prosa ele diz:

“O dia em que o touro sobreviveu.

"Dizem que os fantasmas dos touros atacam em Pamplona. Os sussurros surdos de seus outrora poderosos rugidos podem ser ouvidos quando o vento sopra à distância. Eles choram pela angústia de seus irmãos caídos, em luto já na noite anterior à tourada, antes da morte ao entardecer. (...)

Tão em paz quanto o fogo, o touro marcha lentamente antes de sua morte. Ele é seguido pela morte, ela é a última a entrar na arena. (...)”

Impossível não lembrar uma vez mais Fernando Pessoa: “a morte é a curva da estrada”.

 

*LUÍS PEAZÊ é escritor, jornalista e tradutor de Por Quem os Sinos Dobram (Bertrand Editora), membro da Hemingway Society e PEN Club New York – www.luispeaze.com

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