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Adeus aos Livros


Morei em três países e carreguei livros por onde andei. Para os Estados Unidos fui e voltei três vezes como residente; na Austrália uma vez, quer dizer, entrei com meus livros na bagagem (extra) e saí com os mesmos e mais o dobro. Aliás, sempre foi assim, livros para mim são como coelhos, se reproduzem de modo infernal, basta que eu me acomode um mês em um lugar, lá vem eles para meu domínio. Mesmo quando eu parei de roubar livros emprestados de amigos, eles continuaram a agregação não raras vezes indevida, o caso de receber livros sem querer lê-los, escrevendo resenhas a contragosto, falando bem de alguns meio contrariado... No Brasil andei do Sul para o Rio, dali para outros continentes, uma vez voltei e fui dar com os burros em São Sebastião, São Paulo, de lá retornei para o Rio e mais uma vez, após sair e voltar duas vezes do Brasil fui morar na Bahia – ah! A Bahia –, toda essa aventura tresloucada com os livros nas costas, um fardo que foi se acumulando, com a idade, prova de que esta nem sempre significa sabedoria. Da década de 80 (século passado) até hoje, 2018, consumi mais de um milhão de páginas, juntei mais de 10 mil títulos, uma penitência, não sabia que tinha tanto pecado.

Preciso de ajuda, não aguento mais carregar livros, preciso de alguém tão apaixonado quanto eu fui pelos livros – de papel – que queira um acordo de leniência com os deuses dos alfarrábios, dizem, eles perdoam os pecados literários mais obscenos ou hediondos sem discutir. Basta que você carregue uma pilha de livros por um metro de distância e estará a caminho da salvação. Eis a via crucis:

Vou dividi-la em duas etapas, uma chamada “Livros de Toda Sorte”, a outra, mais específica, “Biblioteca Náutica”. Aviso aos navegantes: em português, em espanhol, francês e inglês.

Livros de Toda Sorte

Serei breve. Você já leu as obras completas de Shakespeare? Tenho três edições para dar a preço de banana. Quer ter o prazer de possuir duas edições raras de Dom Quixote, em espanhol, com gravuras a bico de pena de Gustave Doré? Passar os olhos e as mãos numa edição de Maria de Cada Porto, do meu querido amigo Moacir C. Lopes, com suas observações feitas com o próprio punho à caneta para a edição revisada do ano 2000? - Que bela lembrança, o nobre Moacir me entregou o livrinho e disse: - Peazê, dá uma olhada e vê se encontra alguma coisa antes de ir para o prelo. Sem preço. Pausa para um suspiro longo...

Guy de Maupassant, Mario Quintana, Leo Huberman, Moacyr Scliar, sobrou um pouquinho de tudo, após eu doar muita coisa boa e outras nem tanto, de Antônio Tôrres a Ziraldo, inclusive não sei como não joguei Na Fogueira das Vaidades um presente autografado pelo Sergio Cabral (pai) quando eu ainda acreditava que sua família fosse apenas boêmia (essas falsas impressões que se nos acometem quando preservamos o hímen do coração); eu havia acabado de retornar de minha primeira aventura na América, On The Road (outro título disponível para descarte no meu garage sale virtual), eu queria ser publicitário, conto isto no Alvídia - Um Horizonte, arranjei um emprego na agência carioca Denison e uma das contas caídas no meu colo, para gerenciar, foi a campanha de Sergio Cabral para vereador. Na reunião de briefing eu cheguei atrasado, preso no trânsito de Botafogo vindo de outro cliente, e ao entrar na sala de reunião levei uma bronca do Celso Japiassu (dono da Denison) mas não perdi a pose e cravei: - ué, a campanha tá criada, “Sérgio Cabral o Jeito do Rio”. Sérgio (pai) levantou com aquele sorriso de bichinho de pelúcia tamanho gigante e veio me abraçar. Sem mais reuniões, ele foi o vereador mais votado do Rio, até então, e me deu um livro de Tom Jobim autografado. Quem comprar o lote inteiro “Livros de Toda Sorte” ganha de graça, este do Tom.

Resumindo, meu caro amigo, minha cara amiga, a última estante derradeira que guarda meus fiéis torturadores de plantão está dividida nas prateleiras a, b, c, d, e, f, g, h, j, l, m, n, o, p, q, r. Notou que faltou a “i”? Ela está com os remanescente náuticos, da outra lista mais adiante. Os Livros de Toda Sorte somam aproximadamente 480 itens, títulos, livros. Socorro!

Tem Paulo Coelho e Hemingway, a Terceira Onda e o Homem, Sartre e Machado de Assis, e veja só, A Vida de Castro Alves; Vinicius de Morais e Aldous Huxley, O Perfume, de Patrick Suskind, Carlos Drummond de Andrade e Olga Savary a minha amiga, por falar nisso aqui vai uma estorinha digna de registro: uma vez a Olga me pediu para acompanhá-la de ônibus ao Ministério do Trabalho ou Previdência, não sei bem, uma dessas tocas kafkianas do sistema estatal brasileiro, ela iria demonstrar alguma coisa sobre seu estado precário de saúde para obter um certo benefício do governo. Como gratidão a querida poeta e musa da Banda de Ipanema e de uma meia dúzia de escritores do Pasquim me deu um pijama, entre outros presentes, como caixinhas de fósforos (que tenho até hoje) com gravuras russas. Bem sugestivas, em tempos de Copa do Mundo em Moscou.

Agora, você sabe quem é o Mário? Aquele que... brincadeira antiga de guri. O Mário de quem quero falar aqui é o Andrade. Fui colecionador visceral de tudo o que se tinha publicado dele e sobre ele. Suas cartas com Manuel Bandeira eram o que mais me fascinava, aprendi o que sei escrever com aquelas cartas, depois tentei melhorar-me inspirado no estilo de Llosa, Borges e Garcia, misturei tudo e comprimi, quando descobri Hemingway e parti para meu próprio jeito de datilografar pensamentos – sou orgulhoso por até hoje digitar com os dez dedos sem olhar o teclado. Voltando ao Mário, uma vez fui do Rio à São Paulo só para comprar coisas sobre ele num sebo, estava procurando o endereço, parado numa calçada, havia uma escada descendo para um andar subterrâneo do prédio, alguém passou e ao me deslocar tropecei e literalmente cai dentro do Sebo, era ali mesmo. Outra vez, acompanhando o movimento Grito da Águas (livrinho também disponível) para reportagens do “ativismo ambientalista de ações diretas” (leia-se: vandalismo de protesto pré-black block) e, num sítio em Pindamonhangaba, onde o grupo se reunia ao ar livre, uma dúzia de “líderes” sentados em círculo com galinhas ciscando ao redor, o sítio era um hospital de reabilitação de animais silvestres acidentados pela ação do homem (i.e. fios da rede elétrica, atropelamentos por trem, automóveis e aeronaves, armadilhas de caça, etc), para meu delírio, descobri que o sítio abrigara em priscas eras ninguém menos do que Mário de Andrade. Entrei em transe e o anfitrião me levou ao interior da casa principal do sítio e mostrou-me a banheira onde Mário teria escrito parte de Macunaíma. Pedi e fui autorizado. Deitei-me por um breve momento naquela banheira.

Bom, como dizia a minha querida sogra, bibliotecária ex-diretora da Biblioteca Estadual, aquela ali perto da Central do Brasil: - é o que tem pra hoje, sobre a lista Livros de Toda Sorte.

Cargas ao mar, vamos à Biblioteca Náutica, para os tarados por adrenalina, vento, onda, contornar o Cabo Horn sozinho a bordo de um veleiro ou ancorar em praias desertas na santa paz e coisas do gênero, ou mesmo para os mais preguiçosos como eu que se contentam em (re)adquirir o conhecimento dos antigos navegantes:

Biblioteca Náutica

Em Alvidia, Um Horizonte a Mais (Alvidia, Yet Another Horizon) o estalo fatal foi justamente um dos livrinhos, guardado até hoje entre os demais, que acompanhou meu périplo pelo mundo com livros nas costas – Do Rio à Polinésia. Dali em diante fui agregando coisa séria intercalada com outras aventuras até eu escrever a minha própria. Não por acaso, o último livro adquirido reúne exatamente tudo isso, aventura e humor mesclados com utilidades vitais, a bordo de um barco, no planejamento da mais complexa travessia, verdadeiros tutoriais resumidos sobre sobrevivência e calamidades em alto mar, incluindo desde como construir uma âncora de temporal com calças jeans à inúmeras formas de cozinhar peixe se este for o único item para a alimentação, me refiro ao Boating Digest do meu inesquecível amigo Lloyd Williams. Reservo boas páginas do “Alvídia” sobre ele. Entre o primeiro e este juntei uma estante inteira e, após duas etapas de doações, restaram os que relaciono no link da Loja do Peazê – livros usados náuticos – https://www.luispeaze.com/shop

Não seria possível contextualizar cada um, nacos dramáticos de minha vida, necessários em momentos importantes, da construção ao aprendizado da vela, na manutenção do barco – nossa casa, minha e de minha mulher – e planejamento de travessias, abordagens de baías desconhecidas, ancoragens e superação dos rigores do Mar da Tasmânia, o Grande Estreito de Areia, a Grande Barreira de Corais, o Cabo York, o Golfo de Carpentária e o Mar de Timor. Naquela época, o GPS e muito menos cartas eletrônicas e aplicativos de rotas eram quase uma ficção, e precisei plotar à mão minhas derrotas em cartas náuticas de papel, precárias cartas vale dizer porque eram de uma escala muito pequena e eu não dispunha meios para adquirir um inventário apropriado. Foram livros fundamentais e, mesmo com a sofisticação e avanço tecnológico, continuam sendo até mesmo para entender melhor do que são capazes os atuais aplicativos, ou para uma emergência.

É deste jeito que estou vendendo os livros que sobraram em minha estante, antes de soltar as amarras uma vez mais do Brasil, desta vez com pouca bagagem material. Não é por acaso que escolhi o título “Adeus aos Livros” fazendo analogia com uma das mais célebres e importantes obras de Ernest Hemingway de quem traduzi Por Quem os Sinos Dobram, por falar nisso constam entre os “Livros e Toda Sorte” uma bela coleção de Hemingway.

Ir para o mar, mesmo numa velejada de fim de tarde ou numa saída para pescar ou mergulho frugal de snorkel impõe prudência, para com a sua própria vida e mais do que tudo com as de terceiros que manejem, utilizem ou usufruem do ambiente marinho, fluvial ou lacustre. Na pior das hipóteses considere que livro é sempre bom, quando é adquirido quase de graça, melhor ainda.

Adeus aos livros, no meu caso, é uma necessidade de rever posturas diante de certas situações na vida, prioridades, é a releitura de Hemingway enquanto faço as malas uma vez mais: “aos que trazem coragem a este mundo, o mundo precisa quebrá-los, para conseguir eliminá-los, e é o que faz. O mundo os quebra, a todos; no entanto, muitos deles tornam-se mais fortes, justamente no ponto onde foram quebrados. Então, aos que não se deixam quebrar, o mundo os mata. Mata os muito bons, os muito meigos, os muito bravos — indiferentemente. Se você não está em nenhuma dessas categorias, o mundo vai matá-lo, do mesmo modo. Apenas não terá pressa em fazer isso” – Adeus às Armas.

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