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Leitura do Mundo x Byte-Perception - Publisher´s Forum 2018


Tão sintomático que provei o veneno acidentalmente: a releitura de um fragmento sem autor. Minha irmã postou na rede social do momento uma imagem de três possíveis estágios de aprendizagem linguística e lógica; pré-silábica, silábica e alfabetização; e momentos antes eu tivera a ideia para este artigo. Coincidência? Não importa, mas naquele instante me ocorrera a expressão que, por um curto espaço de tempo, felizmente rápido, pude experimentar em pensamento como se fosse minha, em seguida salvo pela lembrança do seu nobre autor, Paulo Freire: a leitura do mundo, antes do surgimento da palavra. A expressão estava em mim, adormecida, veio à tona sem capa nem contra capa, uma ideia despencada da linha, fora da página, alguns bytes acesos na minha mente.

Não por acaso, relembrei uma entrevista exclusiva que tive o privilégio de fazer com o Professor Roger Chartier sobre a “leitura em tempos de suportes digitais” há exatamente uma década. Da mesma forma, não por acaso feita a entrevista em inglês; de um brasileiro que havia intermediado anos antes a vinda do francês especialista na história da leitura para a Jornada Literária de Passo Fundo (quando ela era um megaevento) e ele dera sua palestra em espanhol. Eis a tradução resumida, da entrevista:

“Primeiro, como podemos dizer qualquer coisa sobre o futuro do livro, dada a velocidade das mudanças na revolução digital e o profundo entrincheiramento histórico das práticas associadas com a publicação e leitura de livros?

É difícil para todos nós e mais ainda para historiadores que já provaram serem os piores profetas. Podemos apenas sublinhar que a revolução digital é um novo aglutinamento de massas porque está associada com a revolução tecnológica (do codex ao computador), a morfológica (da página à tela) e cultural (da obra como tal a fragmentos descontextualizados). Nesse sentido, todas as condições estão postas para apagar as diferentes heranças do passado remoto: o codex, o livro impresso, o direito autoral, as situações de leitura. O único embargo deste diagnóstico de descontinuidade radical está ligado a coexistência, hoje, e eu suponho no futuro, mas até quando? – Entre o mundo digital e as outras formas de composição, publicação e apropriação de textos; escrita à mão e impressa. O principal desafio é entender o quão diferente, de acordo com lugares, meios sociais, gerações ou gêneros textuais esta coexistência estará estruturada. É o único modo de estabelecer um diagnóstico sobre o futuro , enfatizando 1) a substituição de nossas categorias clássicas de nossa ordem de discurso (os conceitos de obra, autoria, propriedade, singularidade e originalidade) por um novo regime de produção de discurso no qual os textos são fragmentados, maleáveis e sem autor); ou 2) a resistência dos livros impressos na forma de gêneros tais como ensaios novelas, história, etc. Em segundo lugar, como eu vejo a evolução do hábito de leitura na atual (2010) tendência digital?

Para mim, a mais importante transformação não é a generalização de uma leitura fragmentada, a descontinuidade, a leitura em frente a uma tela, mas sim as suas consequências: o apagamento da relação entre o fragmento e uma obra. O codex permite, ou impõe, esta relação pela sua materialidade inteira. Ninguém é obrigado a ler todas as páginas de um livro impresso, mas o objeto impõe a percepção da totalidade, a coerência, a lógica da obra como um todo. No mundo digital, o fragmento tal como um dado, do banco de dados ou um website, é destacado da entidade textual da qual foi extraído (lido). Neste caso, a prática cultural de atenção descontínua e estrutura morfológica da textualidade eletrônica estão ligadas para desafiar a definição tradicional do que é um livro, ou um texto. Será que esta definição sobreviverá, isto é, baseada na idéia de coerência de discurso ou narrativa? Ou será a nova ordem de discurso uma sobreposição de fragmentos textuais desconectados? Eu não sei. Quem o saberá? Atenciosamente.” Roger Chartier - Professeur au Collège de France

De volta ao presente, enquanto esbarramos a toda hora num conceito que ainda não era um hash tag quando Chartier me respondeu, daí ele não ter utilizado a palavra “disrupção”, como mola de avanço momentâneo destes tempos, nos negócios, na família, nas noções de ética e moral, das fronteiras (por favor, leia “das” fronteiras, não exatamente “nas” fronteiras), dos padrões de estética (o que é belo e o que é arte, ou não é mesmo sendo), das condições do gênero humano (do clássico macho e fêmea ao neo-in-vitro e multi-facetal não reprodutivo), mola de avanço momentâneo também nas relações entre pessoas, bichos e coisas, eu cravo sem medo de errar, se a leitura do mundo já era impossível, tornou-se a mais desafiadora das utopias.

No terreno da realidade, posto que tenhamos concordado ser impossível ler integralmente o espaço atemporal ao nosso alcance, temos o tráfego contínuo ou intermitente de dados e informação, diluído em imagens, quantidades, tamanhos, direções de movimento, lugares estáticos e transientes, veículos e suportes de transporte e velocidades, onde há uma tensão permanente entre os direitos individuais (legítimos?) com o interesse coletivo (qual?) sob uma nuvem cinzenta da soma dos “eus” chocando-se no céu com a nuvem “nós” a desabarem sobre uma minoria (qualificada ou não?), onde não há mais lugar para ideologia, sinônimo de escombros da esquerda e direita, capital e estado. Vejo uma nova noção emergente e ocasionalmente útil (não necessariamente que provê riqueza ou poder) a byte-perception. Quantos bytes você pode armazenar? Independente da resposta, somos todos meros produtos.

O problema é que a cada dia geramos sobre a terra 2.5 quintilhões de bytes de dados e 90% dos dados digitais atuais foram criados apenas nos dois últimos anos. Aviso deste dinossauro da era do Assembler e Fortran, aos navegantes de primeira viagem: há unidades de bytes inimagináveis a olho nu, do gigabyte ao terabyte, petabyte, exabyte, zettabyte. Pouco? Yottabyte e assim por diante.

Como o assunto continua sendo a leitura, busco socorro no antigo repertório grego de uma mesma época (quatro séculos AC – quantos pensadores de fato surgiram naquela época, comparados com os últimos 400 anos), o conceito de hedonismo, antes e após Epicuro, da noção de ignorância de um certo jovem aluno de Sócrates, através do Mito da Caverna, que educou Aristóteles fundador do Liceu (e seus rolos de papiro os quais, para ler, era necessário dois ajudantes, para desenrolá-los, enquanto se caminhava ao longo da tira estendida) e professor de Alexandre, sucedido por Ptolomeu, pronto, desaguamos na Biblioteca de Alexandria. Ainda precisamos dela, como nunca, em todos os formatos.

Crônica produzida durante o Berlin Publisher´s Forum http://publishersforum.de/

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