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Atlântico (I) – Nós e o Lixo Marinho


[Publicado originariamente no Jornal da Economia do Mar, Lisboa - Dezembro 13, 2017 ]

Assim, justificando a onda de protestos que já começa a cair sobre este observador, vou em frente e provoco mais um pouco, antes de começar o nó final do meu texto. Acrescento que o mundo é um lixo. Você certamente já ouviu, ou até utilizou, esta expressão. Acredite, é verdade. Tudo é lixo neste mundo por aquele mesmo racional arquetípico que deu origem à palavra, isto é, enquanto o mundo gira, lentamente, nos iludindo que exista o norte e o sul, o leste e o oeste – pense bem, estamos todos, o mundo está sempre de cabeça para baixo e não percebemos – tudo o que queremos chegou até nós pela transformação nesse giro infernal e o que sobra (mesmo que engulamos tudo gulosamente, aliteração válida) não vai exatamente para o ralo e acaba. De um jeito ou de outro, volta à tona e se insere uma vez mais em nossas entranhas. Neste caso nós mesmos somos um pouco do lixo que circula inexorável e continuamente sobre a Terra. Ponha um pouco mais de sal nesta receita, os pensamentos. Apenas no debate entre Espinosa e Nietzsche, imagine os demais pensadores incluindo eu e você, se ouve que a consciência é o resultado, uma soma, uma matemática inconclusiva do nosso eu, e isto quer dizer que o que queremos não tem nada a ver com a nossa consciência, é o que não queremos e o que não podemos ter é que se transforma em nossa consciência, daí ser ela também uma forma de lixo. Mente poluída, já ouvimos isso também. Limpe-mo-nos, portanto, a seguir. Eu sei, arrogante, ou, no mínimo, ambicioso. Óbvio, estou escrevendo isento de minha própria consciência. Tente ler com a mesma isenção.

Aceito, por um momento, que exista de fato o lixo marinho, aquele que reside no mar. Mas, para aceitá-lo, devo desdobrar o significado e significante de lixo nas suas formas elaboradas segundo a apropriação eventual, cito resíduo, do Latim residuum, residere, “ficar atrás, sobrar” e, curiosamente, também berço da palavra “residência”. Resíduo descartável e reciclado, respectivamente aquele que tem aparente inutilidade e aquele que é visivelmente um subproduto dele mesmo, isto é, pode ser reinstaurado na sua vida pregressa. Ah, você gosta de exemplo e não faz parte do seleto grupo de marítimos, biólogos, portuários, oceanógrafos…, alguém mais no grupo que já conhece essa pendenga? Uma garrafa de vidro de xarope após ser consumido o seu conteúdo retorna para a fábrica, é lavada e reutilizada na sua forma original, como garrafa para aquele mesmo xarope criado pelo farmacêutico norte-americano John Pemberton, um extrato de folhas de coca, cafeína, óleos aromatizantes de limão, laranja, lima, noz-moscada, canela chinesa, coentro e baunilha, e muita água (a ponto dessa fábrica ser hoje em dia dona de lençóis freáticos e aquíferos ao redor do mundo) que era para ser remédio e virou a bebida popular mundialmente, estranho achado no planeta dos macacos (o filme). Tão popular que suas campanhas de propaganda inspiraram subliminarmente estilos de vida mundo afora. Assim, lixo, resíduo ou descarte reciclado é o caso de uma garrafinha de vidro de Coca-Cola re-internalizada na linha de produção. À propósito, celebrando 75 anos de vida no Brasil. Em Portugal é interessante resgatar um episódio protagonizado pelo nosso nobre Fernando Pessoa. Ele foi chamado a criar o slogan de lançamento da bebida (medicinal, veja só) em 1927, e bombardeou com a pena: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”. Salazar, que não era flor que se cheire, achou um incentivo sutil à disseminação da cocaína e proibiu o desembarque da empresa em Lisboa, sendo todo o estoque da bebida já no chão do porto jogado inteiramente no mar. 40 anos após, em 1977, a Coca-Cola chega novamente de navio às praias portuguesas para ficar, com o slogan “Dá mais vida”. Já o exemplo de lixo (resíduo) descartável é aquele que pode tornar-se outra coisa, não necessariamente reinserido no seu próprio ciclo de vida, como toda a sorte de plástico, papel e metais que podem ser remanufaturados em inumeráveis substratos ou produtos finais (i.e asfalto, componentes para cadeiras, tecidos, ferramentas, artesanato e etc). Mas o homem comum, no dia a dia, não faz distinção entre os significados e significantes, porque é cômodo jogar-se rapidamente de corpo e alma no seu objetivo, ou sonho, no que ele quer, e depois que se lixe a consciência, e os seus semelhantes. Não quer mais, jogue no lixo e siga em frente. A bicha anda.

O nó górdio do lixo marinho

Pelo viés da poluição é mais fácil destrinchar esse imbróglio. Tenha-se como poluição o desequilíbrio, ou degradação mesmo de uma determinada biota, seja ela no espaço livre da terra ou no intestino humano, onde cada um de nós transporta um lodo espantoso. Neste caso, eu prometo, não é menos assustadora a poluição marinha.

Você já sabe que toda a enxurrada pluvial acaba nos mares, certo? Assim como a maior parte dos esgotos, inclusive os esgotos estrangulados, velhos e sem manutenção como os de Lisboa, Rio de Janeiro e qualquer outra cidade grande. Outro fato conhecido é que todo o curso de água é fonte real ou potencial de abastecimento de água servida nas torneiras domésticas e de empresas, escolas e toda sorte de paradeiro humano, após serem tratadas. E é exatamente aqui que existe um nó malfeito. Nem todos os processos de tratamento de água potável, largamente utilizada para beber (um grande equívoco) – não mencionemos aqui regiões abandonadas como na África onde se vê crianças beberem água de poças lamacentas – continuando, nem todos os processos eliminam substâncias químicas residuais persistentes como as que existem na urina de usuários de anticoncepcionais, antibióticos e outras drogas; adicione-se aí descartes clandestinos e criminosos de empresas e hospitais em rios e lagoas, e no mar. Nem pensar em adicionar os descartes diretamente no mar de resíduos radioativos de países que se intitulam primeiros do mundo. Fiquemos com o exemplo das urinas, elas chegam ao mar e se internalizam na cadeia alimentar, desde os plânctons aos pássaros marinhos, das zonas costeiras aos pelágicos. Logicamente a urina em si é dissolvida pela força corrosiva e ácida da água salgada, mas aquelas substâncias químicas nem tanto. Ilações são bem-vindas deste ponto em diante.

Outra área bem afastada do cotidiano da gente das cidades são as convenções do âmbito da IMO sobre segurança, poluição, responsabilidade civil e outras de cujas Portugal e Brasil são signatários (do contrário não poderiam trafegar pelo mar livremente), e que, por exemplo estabelecem normas quanto ao descarte de resíduos de navios que devem ser a uma certa distância em milhas do litoral. Isso inclui a lavagem dos porões de graneleiros, para citar um vetor. Eles realmente lavam suas roupas sujas em alto mar? Faz diferença, em certas regiões de acordo com o regime das correntes? E quanto aos ditos emissários marinhos de esgoto? Aproveito para deixar cair aqui um dado que sempre me alarma, quando lembro: a cada dia é descartado na Baía da Guanabara o equivalente a um estádio do Maracanã de lixo, sem contar com as gotas de óleo deixadas (efeito formiguinha) pelas embarcações que ali flutuam.

Em 2010 este observador participou a convite como jornalista de um encontro da ONU, no Quênia, em Nairóbi, sobre os problemas da água no mundo, onde se falou bastante também da água do mar e poluição. O ambiente era climatizado e civilizado. Procurei no próprio edifício da ONU se havia um processo, mesmo experimental, de reutilização de águas residuais, e não encontrei. Saí nas redondezas e, impressionado com a força da África, fugi, fui visitar um lugar bem africanamente sacrificado, em Mombaça onde vi uma penitenciária quase aberta onde misturavam-se detentos e familiares vivendo em verdadeira degradação humana de insalubridade sanitária total. Com o perdão para um desvio: lá eu ouvi relatos de viciados incluindo prostitutas que trocam injeções do próprio sangue por não terem dinheiro para comprar drogas, desfrutando de um efeito apenas placebo. Triste. Enquanto escrevo, dia 08, me chega um FEED da mesma ONU, de Nairóbi, onde aconteceu uma assembléia geral dia 06/12/2017 em que foram aprovadas várias resoluções para combater, prevenir e reduzir a poluição dos oceanos até 2025. Portugal e Brasil estavam lá. Quer dizer, daqui a cinco anos teremos um Atlântico mais limpo. É?

Um verdadeiro nó górdio à disposição da consciência coletiva dos atores mais responsáveis pelas decisões e implementações nas esferas de uso, manejo e usufruto do mar. Pois diretrizes e normas decididas em convenções existem, parecem robustas, e acumuladas através das décadas, mas a problemática está longe de ser resolvida, enquanto aumenta. A seguir: Atlântico II – Um Mar Negro que Podia Ser Nosso.


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